A Empresa Gestora de Ativos (EMGEA) e a versão brasileira da Fannie Mae/Freddie Mac

Em março do ano passado eu escrevi um artigo aqui no Linkedin sobre “As Crises Bancárias e a Discussão do Moral Hazard”. Naquela época, o tema de crise bancária nos Estados Unidos com a falência de alguns bancos por lá voltava a tomar o noticiário. Hoje, pouco mais de um ano depois, volto de certa forma ao mesmo tema, mas agora por outra razão.

Ontem, no dia 22 de abril de 2024, o Governo Federal editou a Medida Provisória No. 1.213, que criou o Programa “Acredita”, com medidas de estímulo ao mercado de crédito. Entre outros pontos, esta Medida Provisória mudou as atribuições da Empresa Gestora de Ativos (EMGEA), autorizando-a “fomentar o crescimento do mercado imobiliário nacional, provendo maior liquidez aos ativos com base em crédito imobiliário”.

Em uma primeira análise, é possível notar que a EMGEA, em seu novo papel, tem funções muito parecidas (senão iguais) à Fannie Mae[1] e à Freddie Mac nos Estados Unidos. Pela nova regra, a EMGEA poderá:

  • adquirir créditos imobiliários concedidos por instituições financeiras, públicas ou privadas, para incorporação em carteira ou para posterior venda ao mercado;
  • adquirir, no mercado financeiro, títulos e valores mobiliários lastreados em crédito imobiliário; e
  • ofertar instrumentos financeiros que permitam a proteção de instituições financeiras, públicas ou privadas, a exposições de remuneração e prazos oriundos de concessão de crédito imobiliário. Ela poderá, inclusive, atuar como securitizadora de créditos.

Bom, a ideia do Governo Federal não é nova. A Fannie Mae (Federal National Mortgage Association) e a Freddie Mac (Federal Home Loan Mortgage Corporation) foram criadas, respectivamente, em 1938 e 1970. Cada uma tem um foco específico, mas ambas tem o mesmo propósito: serem entidades apoiadas pelo governo federal (GSE – Government Sponsored Entities) e encarregadas de expandir o mercado secundário de crédito imobiliário (mortgage market) dos Estados Unidos, dando financiamento aos bancos por meio da reciclagem de suas carteiras de crédito.

Em outras palavras, assim como se propõe agora com a EMGEA, Fannie Mae e Freddie Mac não atuam diretamente no mercado de varejo de crédito. Elas não originam financiamentos imobiliários, nem fazem financiamento direto. Isso é papel das instituições financeiras. O que elas fazem é, através de certas estruturas, prover recursos (liquidez) ao mercado financeiro, adquirindo suas carteiras de crédito e, muitas vezes, empacotando-as para revendê-las a investidores. Este tipo de operação de mercado de capitais é mais conhecida como securitização de créditos ou recebíveis, e lá nos Estados Unidos gerou títulos conhecidos como RMBS (Residential Mortgage-Backed Securities).

Durante a crise bancária que assolou os Estados Unidos e o mundo em 2008, os RMBS tiveram um papel central, e tanto Fannie Mae, quanto Freddie Mac, foram dois grandes protagonistas da crise e catalisadores dos seus efeitos.

Nesse período, em 2008, eu estava trabalhando na minha tese de mestrado (LL.M) na University of Michigan Law School. O tema da minha tese era a crise do subprime de 2008 nos Estados Unidos e o papel a regulação norte-americana na criação de todo aquele problema.

Eu lembro de discutir o papel da Fannie Mae e da Freddie Mac em uma reunião com o meu orientador, Professor Vik Khanna, e com o então professor Michael Barr (logo depois nomeado por Barack Obama para o cargo de US Department of the Treasury’s Assistant Secretary for Financial Institutions, encarregado de repensar e reformular a regulação bancária dos EUA). A questão que estava sobre a mesa era: este tipo de entidade traz mais benefícios ou malefícios à economia?

Já adianto que nunca consegui – e acho que ninguém conseguiu – chegar a uma resposta sobre isso, mas o Professor Michael Barr já naquela dizia, fazendo brincadeira (mas falando sério), que Fannie Mae/Freddie Mac eram como os tubarões brancos: eram importantes para o ecossistema, mas todo mundo tinha medo delas….

Ele tinha razão. Já havia naquela é época um sentimento de que elas representavam um risco ao mercado. Alguns meses depois daquele bate-papo, em setembro de 2008, tanto a Fannie Mae, quanto a Freddie Mac, tiveram que ser colocadas em “conservatorship”, algo similar ao processo de intervenção de instituições financeiras existente no Brasil, sob responsabilidade do Banco Central [2]. E detalhe: elas tecnicamente seguem assim.

Elas chegaram nessa situação por uma série de razões:

    1. Regulação Insuficiente: Fannie Mae e Freddie Mac tinham o curioso status de GSEs, mas na prática eram companhia privadas, com acionistas e capital na bolsa de valores nos Estados Unidos. Tinham um papel de missão pública muito importante, mas ao mesmo tempo operavam com um baixíssimo nível de regulação.
    2. Competição por Posição de Mercado: ao longo de muitos anos, Fannie Mae e Freddie Mac tinham uma dominância no mercado secundário de crédito imobiliário. No entanto, alguns anos antes de 2008, passaram a sofrer pesada concorrência privada, o que levou a uma gradual deterioração de suas práticas e políticas internas. Sua atuação se tornou mais permissiva e maiores riscos foram sendo assumidos. Exemplo disso foram os subprime mortgages, ou créditos imobiliários ‘podres’, cujos tomadores tinham o pior risco de crédito. Eles foram os primeiros a falharem sem seus pagamentos (na gíria, “defaultarem”) quando a bolha imobiliária estourou, gerando um efeito em cascata no sistema financeiro.
    3. Reservas de Capital Inadequadas / Problemas de Liquidez: como não atuavam como instituição financeira, Fannie Mae e Freddie Mac possuíam reservas de capital insuficientes para cobrir as perdas crescentes de inadimplências dos subprime mortgages. As crescentes perdas e a inadequação de capital levaram a sérias preocupações com liquidez, ameaçando sua capacidade de funcionar e de cumprir suas obrigações.
    4. Riscos para Estabilidade para o Mercado: Dado o tamanho e o seu papel crucial no sistema de financiamento habitacional dos EUA, o colapso potencial de Fannie Mae e Freddie Mac representava um risco sistêmico para todo o sistema financeiro norte-americano.
 
Mas em minha opinião, o principal elemento que levou Fannie Mae e Freddie Mac a uma situação complicada na crise de 2008 foi a percepção do mercado de que havia uma garantia implícita do Governo Federal norte-americano às suas atividades (implicit federal government backing). Embora privadas, elas tinham acesso a capital do Tesouro dos EUA. Além disso, elas tinham missão pública, foram criadas por lei federal, o que fazia com que muitos as vissem como entes públicos, embora não fossem. Em razão disso, o mercado não exercia um julgamento ou controle natural sobre as operações realizadas por estas entidades (inclusive as de subprime), como seria esperado, e por isso elas foram se espalhando pelo mercado.

Criada essa percepção, ainda que errada, criou-se a situação de moral hazard, sobre o qual falei em meu artigo de 2023. É quando parte assume mais riscos do geralmente assumiria, porque ela tem a percepção de que outra parte arca (ou arcará) com os custos desses riscos. A outra parte, neste caso, era o Governo Federal dos Estados Unidos.

A tempestade perfeita da crise dos subprime mortgages de 2008 nos Estados Unidos teve total ligação com a atuação da Fannie Mae e da Freddie Mac, com o moral hazard que se criou a partir da percepção de que havia um “implicit federal government backing” e o fato de que, naquele momento, essas entidades eram muito grandes e muito importantes para falirem: o famoso “too big to fail”. Tiveram, ao final, que serem resgatadas pelo Tesouro Federal dos Estados Unidos.

Voltando ao Brasil e a ideia – ainda não declarada – de tornar a EMGEA na Fannie Mae/Freddie Mac brasileira, não há necessariamente um problema nisso. A bem da verdade, pode ser uma ideia válida, já que o Brasil não tem hoje uma entidade governamental (ou uma entidade com funding público) que faça o papel de indutor de crescimento do mercado secundário de financiamento imobiliário. Existem apenas os bancos públicos (CEF e Banco do Brasil), mas que atualmente competem com os outros bancos pelo mercado.

No entanto, o exemplo norte-americano nos lembra da importância de uma regulação muito estrita com relação à atuação dessas entidades, que no caso da Fannie Mae/Freddie Mac é feita pela Federal Housing Finance Agency (FHFA). No caso da EMGEA, a Medida Provisória no 1.213/24 não trouxe nenhum contexto com relação à regulação e, em especial, supervisão legal de suas atividades. Isso, a meu ver, é preocupante, diante da experiência muito traumática nos Estados Unidos.

Esperemos que, durante a tramitação da Medida Provisória no 1.213/24 no Congresso Nacional, o tema da regulação/supervisão explorado neste artigo seja mais bem discutido e aprimorado. Pode ser importante para o mercado de financiamento imobiliário brasileiro ter uma entidade desta natureza, mas não me parece que com uma Medida Provisória que trata um assunto tão complexo de forma tão simplista, caminharemos na direção correta.


[1] Segundo anuncia a Fannie Mae em seu website“We provide liquidity to the housing market. By delivering loans to Fannie Mae, lenders free up funds that they can use for purposes such as additional lending. We bundle the loans we acquire into securities that are sold to investors around the world.”

[2] Uma outra entidade que faz parte do sistema de financiamento imobiliário norte-americano, a Ginnie Mae, não foi incluída porque ela já era uma entidade pública, totalmente controlada pelo governo, e em razão de apenas operar em certos financiamentos garantidos por entes federais (e não em subprime, como as demais), ela não tinha exposição aos mesmos riscos que Fannie e Freddie Mac.